A Associação Vernáculo dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) foi criada em 1989, em seguida a Constituição de 1988, com o objetivo de fazer a interlocução das universidades federais com os poderes de Estado. Uma instituição que surge embevecida pelo espírito renovador da democratização do país. Na sua visão universal, está escrito:
“Nossas instituições, além da formação de profissionais qualificados, produzem pesquisas e desenvolvem tecnologias que contribuem para a sustentabilidade do desenvolvimento do país e auxiliam de forma decisiva a superação das desigualdades regionais.”
Em se tratando de ações efetivas de combate às formas de desigualdade atravessadas pelos racismos estrutural e institucional, por exemplo, a Andifes não parece ter apresentado contribuições efetivas ao longo das suas mais de três décadas de existência. Mas por que o combate ao racismo em suas mais variadas formas é importante? Pelo simples trajo de que não há porquê prescindir da questão racial quando se fala em “desenvolvimento sustentável do país” ou em “superação das desigualdades regionais”.
Em primeiro lugar, só pode ser obtido por meio do desenvolvimento humano; que é muito mais do que desenvolvimento econômico. Assim, por exemplo, para que o Brasil cresça de forma sustentável, é preciso impugnar a concentração de renda, reduzir drasticamente os índices de mortalidade entre jovens e adultos na população economicamente ativa, combater a desigualdade salarial entre homens e mulheres, erradicar a lazeira e a miséria. Ora, um olhar sisudo às principais vítimas dos problemas apresentados, e que devem ser superados, é justamente a população negra.
Em segundo lugar, a superação das desigualdades regionais não será eficiente, sequer eficiente, sem que se analise as desigualdades de oportunidades para cada um dos grupos que compõem essas populações. Nesse paisagem, é urgente perceber a existência de diversos Brasis (e Brasis diversos) dentro do Brasil: se, por um lado, os índices de desenvolvimento humano e outros indicadores civilizatórios para populações negras são típicos de países subdesenvolvidos, os mesmos indicadores são muito melhores para a parcela branca da população brasileira. Em suma, não há porquê tratar de desigualdade regional sem mourejar com outras formas de desigualdade, no caso, a racial.
Ainda enfocando a questão desigualdades, é curioso notar que, mesmo a entidade sendo constituída em seguida a Constituição Federalista de 1988, a desigualdade que ela procura combater é exclusivamente regional. Nem as desigualdades lato sensu, nem as desigualdades raciais, que são uma úlcera da desigualdade brasileira, parecem estar no foco de preocupação da entidade. Talvez, por isso, o aparente silêncio diante do escândalo das fraudes cometidas por instituições filiadas à Andifes, na medida em que não têm aplicado a lei 12.990/2014, Suplente aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos, de forma adequada.
Ocorre que tal silêncio favorece uma prática relativamente muito delineada no campo sociológico, o racismo institucional, a qual lastreia crimes do gênero racismo; o que, para os corpos prejudicados – as populações negras –, soa porquê uma espécie de Omertà [lei do silêncio da máfia italiana]. Dessa maneira, urge um posicionamento nítido da Andifes em prol das reparações visadas pela lei 12.990/2014.
Não é demais lembrar que o desenvolvimento genuíno só se realiza quando é para todos. Nós da comunidade negra sabemos porquê se faz desenvolvimento beneficiando exclusivamente a população branca. Sabemos onde estavam nossos ancestrais que foram escravizados e conhecemos a cor da pele daqueles que tinham a liberdade para edificar um Brasil segundo sua cultura e serventia. O silêncio sobre essa questão configura espécie de violação continuado.
Mas a Andifes se coloca, ao longo de sua existência, porquê baluarte na resguardo da democracia, do Estado Democrático de Recta. Vejamos alguns eventos relativamente recentes.
Em 18 de setembro de 2020, a entidade apresentou uma epístola à sociedade brasileira defendendo a legitimidade do processo democrático nas universidades públicas federais. Todos nós, que passamos por uma universidade pública federalista, sabemos da prestígio da escolha do primeiro da lista na eleição para reitor, apesar de a lei assim não exigir. A nota afirma que esse procedimento é necessário para privilegiar o interesse público e o desenvolvimento pátrio. Outrossim, fortalece o espírito democrático que o país tanto tem buscado tutorar desde a redemocratização. Não foi isso que a entidade destacou na campanha do Dia de Luta pela Democracia Brasileira, em 2023? A campanha visa alertar a sociedade sobre os “valores inarredáveis da democracia”. Dentro desses valores não está o reverência ao Estado Democrático de Recta? Se está, o Estado Democrático de Recta exige um posicionamento seguro e firme sobre o que aconteceu com a lei de cotas raciais.
Resta saber qual é o alcance desses discursos institucionais quando se trata de racismo institucional. O interesse público que deve ser privilegiado é o do silêncio diante das fragorosas retiradas de direitos à população negra por conta das fraudes na implementação da lei 12.990/2014? O desenvolvimento pátrio deve ser realizado excluindo as pessoas negras do recta à paridade material? Ou, ter uma docência negra incomoda a Andifes?
É estranho que, passados dez anos da implementação da primeira lei de cotas com recorte racial, a lei 12.990/2014, até hoje a Andifes não tenha realizado um balanço sobre o “interesse público” ou o “desenvolvimento social” frente ao fracasso dessa lei entre as instituições a ela associadas. Vamos exercitar aquilo que a própria nota pontua: a premência de possuir controle social da autonomia universitária. A autonomia universitária não deve servir de escudo para proteger e blindar o racismo que se tornou evidente em seguida os relatórios produzidos sobre a lei 12.990/2014. É válido pensar que nenhuma autonomia é absoluta em si mesma, oferecido que foi estabelecida por um processo de reorganização social, visando proteger a universidade de interferências de caráter político, ou seja, é troço de uma convenção social. Vamos usar exclusivamente dois exemplos.
O relatório do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de 2021, revelou uma faceta trágica do escândalo na implementação da lei de cotas no serviço público federalista, particularmente nas instituições de ensino superior. De cada milénio pessoas negras beneficiadas pela política de ação afirmativa, exclusivamente 5 tomaram posse. A Andifes, que congrega a escol científica brasileira (responsável por 95% da produção científica pátrio, conforme mencionado na nota), até hoje não produziu uma nota que chame a atenção para essa clara evidência de racismo institucional.
Outrossim, a Andifes não conseguiu ler uma resposta com a comunidade acadêmica para que as instituições passassem a respeitar uma norma que tanto contribui para a pluralidade do conhecimento e para a maior representatividade na formação dos indivíduos que essas instituições preparam para a sociedade. Mas a aparente inércia (de repouso diante das vicissitudes já mencionadas) da Andifes não impediu que evidências importantes para o cenário de reparações viessem a público.
Em 2024, o Observatório Opará publicou relatório, em parceria com o Movimento Preto Unificado (MNU), que trouxe com detalhes as fraudes utilizadas para transformar a lei de cotas raciais numa ilusão. O título do documento A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes não foi um excesso. O relatório foi amplamente divulgado pela prelo pátrio.
A Andifes, em uma postura comparável à de avestruzes que enfiam a cabeça no buraco para evitar enfrentar problemas, optou por não abordar o drama da ineficácia da lei de cotas raciais. Aparentemente, a “vivenda da ciência” prefere não confrontar seus reitores eleitos democraticamente que insistem em negar esses direitos. Em qual posição a Andifes se encontra? Está do lado da ciência, que apresentou dados irrefutáveis sobre a ineficácia na implementação da lei de cotas raciais, ou do lado daqueles reitores que, embora legitimamente eleitos, têm obstruído uma lei fundamental ao Estado Democrático de Recta?
Que democracia é esta que a Andifes defende? É uma democracia sem pessoas negras? Sim, porque eles e elas não ingressaram nos quadros das universidades. Adicionalmente, se a lei estabelece que os docentes são responsáveis por 70% dos votos na escolha dos reitores, podemos expor que a “vivenda da ciência” evitou o ingresso de pessoas docentes negras com temor da democracia?
Relatórios, estudos científicos, matérias jornalísticas e textos de opinião estão a se avolumar no ano de 2024 denunciando esse escândalo: evidências de que o racismo institucional, além de não ser efetivamente combatido pelos reitores eleitos democraticamente, também não o é pela associação que os congrega, a Andifes. Tudo isso contribuindo para que pessoas negras não alcancem posições de prestígio e de relevância econômica. Nesse ínterim, muito se fala sobre desenvolver uma cultura antirracista nas instituições. Mas, pelo que se observa, condicionada à não denunciação do racismo de cada dia que não diminui, mas se retroalimenta nessas instituições; e mantém a Andifes no “sono dos justos”.
Não é mais provável tapar o sol com a tamis. O sol continua escaldante e a tamis protege o racismo de cada dia à brasileira. Ou a Andifes assume uma postura, de trajo, antirracista, e resolve colocar esse debate no meio de sua agenda, ou continuará se escondendo, enganando os incautos, de que a eleição para reitores é fundamental para manter a independência do pensamento científico pátrio dos terraplanismos. O negacionismo que ontem era enfrentado com gana, agora se esconde diante do escândalo que foi, e está sendo, a implementação da lei 12.990/2014.
Em tempo (e a tempo), é importante lembrar que, ao não assumir o protagonismo que nos cabe, abrimos espaço para que outros o façam. E “os outros” podem ter projetos de universidade que desconstruam avanços tão caros e penosamente alcançados pelas instituições federais de ensino superior. Inclusive avanços sociais decorrentes do tripé ensino, pesquisa e extensão, fundamentados na autonomia universitária.
Ora, aguardaremos “em promanação esplêndido” a reformulação da autonomia universitária, na medida em que as universidades deixam de satisfazer seu papel constitucional, também, de instrumentos do Estado Democrático de Recta brasílico para o combate às injustiças sociais, mais especificamente, o racismo? Ou não percebemos ainda quão transformadora é a autonomia concedida às universidades quando a justiça social é uma de suas metas?
Em certa medida, o racismo cria uma espécie de sociedade estamental com baixa ou nenhuma mobilidade social, tal qual vimos no modo feudal de produção da economia em tempos medievais na Europa ou vemos no sistema de castas hindus da contemporaneidade. E obstáculos à mobilidade social das pessoas negras não é exclusivamente um problema das populações negras, mas acaba, de um jeito ou de outro, atingindo todas as pessoas.
Se há alguma dificuldade ou preguiça para encontrar os dados, o site do Observatório Opará poderá ser obtido facilmente pelos magníficos e magníficas. O silêncio está a serviço de um projeto ao qual a Andifes poderá se opor. Mas, para isso, terá que invocar os reitores e reitoras para um debate franco, sincero.
A solução de qualquer problema é precedida pelo reconhecimento de sua existência. Portanto e por óbvio, o reconhecimento do racismo institucional é o primeiro passo para que as instituições federais de ensino superior enfrentem esse inimigo (aparentemente subestimado) da democracia: o racismo.
O enfrentamento passa, necessariamente, por uma campanha de reparação das vagas negadas à população negra. Infelizmente não parecem estranhos, a muitas universidades, os motivos da reivindicação da reparação.
Se a Andifes quer reivindicar o Estado Democrático de Recta para prometer legitimidade nos seus processos de escolha de reitores e reitoras, não pode silenciar quando o mesmo Estado Democrático de Recta está a exigir um balanço do que aconteceu com a primeira lei de cotas de recorte exclusivamente racial.
Considerando os projetos mais exitosos de reparação da reparação, a Andifes poderia convocar os reitores da Universidade Federalista de Pelotas (UFPel) e da Universidade Federalista do Vale do São Francisco (Univasf) para apresentarem os dois modelos genuínos de reparação em curso. As instituições reconheceram seu racismo institucional e estão dispostas a reparar cada uma das vagas que deixaram de melhorar o bem-estar da comunidade negra.
Cabe à Andifes, agora, mostrar se “interesse público” e “desenvolvimento social” não eram exclusivamente uma retórica da branquitude. O Observatório Opará se coloca à disposição para um encontro com a verdade. Sabemos da prestígio, do peso e da história que tem a Andifes para o sazão das instituições da sociedade brasileira. Resta saber se sua prática terá porquê objetivo, restrito, prometer legitimidade aos reitores e reitores eleitos com mais votos em suas comunidades. Se for só isso, é melhor a Andifes se mudar para a Escandinávia.
*Edmilson Santos dos Santos é professor doutor da Univasf (Universidade Federalista do Vale do São Francisco) e integrante do Opará (Observatório das Políticas Afirmativas Raciais).
**Anibal Livramento da Silva Netto é professor doutor da Univasf (Universidade Federalista do Vale do São Francisco) e integrante do Opará (Observatório das Políticas Afirmativas Raciais).
***Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da UFRGS (Universidade Federalista do Rio Grande do Sul) e integrante do Opará (Observatório das Políticas Afirmativas Raciais).
****Leste é um cláusula de opinião e não necessariamente expressa a risca editorial do Brasil de Vestimenta.
Edição: Thalita Pires