Uma novidade decisão judicial da 1ª Vara Federalista em Dourados (MS) pode escalar o já incomplacente conflito envolvendo o povo Guarani Kaiowá e fazendeiros em Douradina (MS).
Depois que a reintegração de posse de uma das áreas retomadas na Terreno Indígena (TI) Panambi Lagoa-Rica, sobreposta por fazendas, foi revogada, o juiz Rubens Petrucci Junior determinou que os indígenas se retirem de onde estão e sejam confinados em uma dimensão de 17,7 hectares.
A decisão prevê que barracos fora do perímetro sejam destruídos por forças de segurança e que o não cumprimento pode acarretar multa diária de R$1 milénio e detenção de lideranças.
O mesmo juiz já havia disposto pelo detrito da retomada Guaaroka, uma das sete áreas ocupadas pelos indígenas dentro do território. A liminar, no entanto, foi derrubada no último 5 de agosto pela desembargadora Audrey Gasparini, do Tribunal Regional Federalista da 3ª Região (TRF-3), dois dias depois de um ataque armado de fazendeiros que deixou 10 indígenas feridos – dois deles gravemente, com tiros na cabeça e pescoço.
Apesar de suspender o detrito, Gasparini estipulou que os indígenas ocupem uma pequena dimensão deste território, que está sobreposto pela Quinta Sítio José Dias Lima. A proposta, apresentada pelo legisperito das fazendeiras, Wellington Morais Salazar, e acatada pela desembargadora, seria para permitir que as proprietárias explorem economicamente o terreno.
“Resíduo embuçado”
Com base neste trecho, o juiz Petrucci Junior determinou medidas cautelares consideradas “absurdas” pelas indígenas. Para Anderson Santos, assessor jurídico do Recomendação Indigenista Propagandista (Cimi), as determinações são “abusivas” e visam utilizar um “detrito embuçado”.
Além de não ter havido, segundo as lideranças, qualquer diálogo ou aval da comunidade indígena com esta proposta, os 17,7 hectares sugeridos pelo legisperito Salazar para o confinamento estão em uma dimensão já ocupada pelos Kaiowá há mais de uma dez. O terreno fica na retomada Ita’y Ka’aguyrusu.
Se essas imposições vierem, avalia Rafael*, liderança Kaiowá, “vai trazer muita violência. Querem nos rodear nestes 17 hectares porquê se fôssemos animais. Não permitirão que o pessoal saia para qualquer quina. Teremos que permanecer no lugar, porquê presidiários, com policiamento ao volta. Nós somos seres humanos, somos povo originário. Não aceitamos isso”.
Rubens Petrucci Junior determinou que a dimensão seja delimitada pela Polícia Federalista, com a presença de lideranças Guarani Kaiowá, representantes das fazendeiras, do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), da Funai e do Ministério Público Federalista (MPF).
As forças de segurança ficam autorizadas a destruir qualquer barraco fora do perímetro. E os responsáveis por construí-los identificados para apuração de violação de insubordinação.
Identificação e revista de apoiadores e lideranças indígenas
A decisão judicial prevê, ainda, que qualquer pessoa que acesse a dimensão seja identificada, revistada e tenha apreendidos apetrechos que, na visão das forças policiais, possam ser usados porquê arma ou material para edificar barracos.
Petrucci Junior quer, ainda, que todas as lideranças indígenas sejam identificadas. “Não sendo civilmente identificados, que sejam submetidos à identificação criminal”, afirmou o juiz.
As medidas, afirma o legisperito Anderson Santos, foram criadas “à revelia e só atendem uma das partes: são contra a comunidade indígena”. Outrossim, “a decisão autoriza que a Força Vernáculo, que veio para cá para fazer uma espécie de contenção de confronto, que ela mesma provoque o conflito. Porque a autoriza a derrubar a vivenda dos indígenas. Logo é um detrito embuçado”, agrega.
“O juiz não está entendendo nosso sofrimento cá. Está ouvindo unicamente os produtores”, declara Reinaldo*, uma das lideranças das retomadas. “Estamos reivindicando o que é nosso. Se quiserem tirar nossos barracos daqui, vai ter mais efusão de sangue. Sabemos onde entramos, esta dimensão não é do produtor. Ela representa nossa própria respiração. A terreno é nossa”, ressalta.
Em reunião nesta quarta-feira (28), a comunidade indígena da TI Panambi Lagoa-Rica decidiu que não vai retroceder nas retomadas e redigiu um documento, com dezenas de assinaturas pedindo que a procuradoria da Funai entre com um recurso com urgência para suspender a decisão. O texto solicita, ainda, o MPI.
Força Vernáculo intensifica abordagens
As medidas determinadas pelo juiz Petrucci Júnior ainda não estão valendo. Depois a notificação da comunidade, que não ocorreu, a PF terá cinco dias para realizar a norma da dimensão. Apesar disso, a Força Vernáculo já está agindo porquê se troço das regras estivesse em vigor.
A intensificação das abordagens, além de constatada pelos indígenas, foi sentida por esta própria reportagem. Nesta quarta-feira (28), as duas repórteres do Brasil de Trajo que fazem a cobertura do conflito na retomada foram enquadradas, com documentos fotografados e questionamentos repetidos. Três abordagens semelhantes aconteceram no pausa de seis horas.
O mesmo rigor por troço dos agentes da Força Vernáculo não foi observado com indivíduos e veículos que apoiam o acampamento dos fazendeiros. No final da tarde da quarta-feira (28) uma caminhonete preta de marca Hilux passou pela base da Força Vernáculo sem qualquer interceptação. Da janela, uma pessoa filmou os indígenas ao volta e o sege saiu em subida velocidade. Minutos depois, dois homens foram flagrados tentando incendiar uma vivenda de sapé na retomada Kurupa’yty. Fugiram quando os guerreiros Kaiowá se aproximaram.
Entenda o conflito
A retomada Guaaroka, sobre a qual estão os 147 hectares da herdade José Dias Lima, existe desde 2020. É unicamente uma das áreas que integra um território mais vasto, de 12.196 hectares: a TI Panamabi Lagoa-Rica. A luta dos indígenas para reocupar seu território tradicional ganhou novos contornos desde que, em 13 de julho, retomaram mais três partes porções de terreno. São as retomadas Yvy Ajerê, Kurupa’yty e Pikyxyin.
Desde logo, a reação de produtores rurais fez o conflito escalar. Além dos ataques armados, fazendeiros montaram um acampamento que está a metros de pausa dos Kaiowá. No último sábado (24) um parelha de lideranças de Yvy Ajerê sofreu uma tentativa de homicídio quando voltavam de moto à comunidade. Foram perseguidos e atropelados por um sege. Comerciantes da cidade de Douradina se recusam a vender suprimentos aos indígenas.
A TI Panambi-Lagoa Rica já foi reconhecida e delimitada pela Funai em 2011. De lá para cá, no entanto, o processo demarcatório está estagnado. Por esta vagar, os Kaiowá vêm recuperando o seu território por conta própria. “Se querem delimitar uma dimensão para que a gente fique, pois que delimitem logo os 12.196 hectares do nosso território”, reivindicou Rafael.
*Os nomes foram alterados para a preservação das fontes.
Edição: Nathallia Fonseca