O que a psicanálise tem a dizer sobre os laços sociais?

O desamparo

A vocábulo DESAMPARO em sua etimologia significa desistência; exigência de quem está ermo, sem auxílio material ou moral. Estado daquilo que caiu no esquecimento, do que está sem proteção.

“O desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser. Desamparo e angústia caminham juntos.” (Sartre)

Segundo a teoria lacaniana, o DESAMPARO é estruturante, sendo “uma exigência estrutural em face da qual o quidam deve se situar”. Assim o desamparo em sua relação com o eu e a angústia, lança o sujeito em procura do objeto perdido, objeto levante, justificação de libido.

Já a leitura dos textos freudianos sugere que o laço social, geração de Eros, é uma dentre as várias soluções que o ser humano utiliza frente ao desamparo. Tal solução se mostra uma ilusão, no sentido freudiano do termo: uma crença motivada pela realização de um libido, cuja força origina-se em um dos mais prementes desejos da humanidade: a premência de proteção através do paixão.

O poema de Bráulio Bessa- “Recomece”, nos dá de alguma forma, a dimensão do desamparo visto sob um olhar contemporâneo:

Recomece | Bráulio Bessa

Quando a vida maltratar possante e sua espírito sangrar, quando esse mundo pesado
lhe melindrar, lhe esmigalhar…
É hora do recomeço.

Recomece a LUTAR.
Quando tudo for escuro
e zero iluminar,
quando tudo for incerto
e você só duvidar…
É hora do recomeço.

Recomece a ACREDITAR.
Quando a estrada for longa e seu corpo pecar,
quando não houver caminho
nem um lugar pra chegar…
É hora do recomeço.

Recomece a CAMINHAR.
Quando o mal for evidente
e o paixão se ocultar,
quando o peito for vazio,
quando o amplexo faltar…
É hora do recomeço.

Recomece a AMAR.
Quando você desabar e ninguém lhe aparar,
quando a força do que é ruim
conseguir lhe derrubar… É hora do recomeço.

Recomece a LEVANTAR.
Quando a falta de esperança
deliberar lhe vergastar, se tudo que for real for difícil suportar…
É hora do recomeço.

Recomece a SONHAR.
Enfim,
É preciso de um final pra poder reencetar,
porquê é preciso desabar pra poder se levantar.
Nem sempre engatar a ré
significa voltar.

Remarque aquele encontro,
reconquiste um paixão,
reúna quem lhe quer muito,
reconforte um sofredor,
reanime quem tá triste
e reaprenda na dor.

Recomece, se refaça,
relembre o que foi bom,
reconstrua cada sonho,
redescubra qualquer dom,
reaprenda quando errar,
rebole quando dançar,
e se um dia, lá na frente, a vida der uma ré,
recupere sua fé e RECOMECE novamente.

-Bráulio Bessa

Assim porquê sabiamente Sartre, Lacan e Freud trouxeram reflexões e observações importantes sobre o desamparo e laço social, vale colocar no nosso radar um olhar atualizado sobre as mesmas questões que desde sempre atravessaram o sujeito, numa novidade cartografia- um tanto que é desde sempre sim, mas que se reedita, que se inscreve nas cenas de todos nós sujeitos imersos no contemporâneo, e por isso trazer um poeta da nossa atualidade, que dialoga às claras, de forma simples e direta com o público, falando disso que é sensação de desistência, de perda, de incompletude, de não valia, de impossibilidades, de furo, de angústia, de sofrimento, de DESAMPARO.  De veste, é disso que se trata, desde que nascemos somos tomados por essa sensação de vazio e desistência, e o pranto do bebê, não porquê demanda de leite/penúria, se repete na tentativa vã de se reencontrar com esse momento de prazer primeiro. Grande ilusão!

Na verso de Bráulio Bessa, o desamparo que trazemos cá para reflexão é nomeado com algumas palavras marcantes porquê:

SANGRAR, ESMAGAR, ESCURO, INCERTO, FRAQUEJAR, VAZIO, FALATAR, CAIR, DERRUBAR, AÇOITAR, significantes que nos trazem notícias de nossa fragilidade, incompletude, ou sejam lá quais forem os adjetivos e substantivos que possamos recorrer para tentar simbolizar isso que nos atravessa, nessa relação consigo mesmo e com os Outros.

Nas palavras LUTAR, CAMINHAR, ACREDITAR, AMAR, LEVANTAR, SONHAR ou em outras porquê RECONQUISTE, REÚNA, REANIME, RECONFORTE, REDESCUBRA, REAPRENDA, REMARQUE, significantes estes que trazem o prefixo RE temos a possibilidade e proposta de um tanto novo, que pode ser revisto, reeditado, e zero melhor para ilustrar isso trazendo a grande máxima de Guimarães Rosa trazido por Mário Sérgio Cortella (filósofo contemporâneo) ao expor que não nascemos prontos e vamos nos gastando, mas nascemos não prontos e vamos nos fazendo, no seu livro “Provocações Filosóficas”

E o que a psicanálise tem a expor? Por que a psicanálise?

Joel Birman- Psicanalista da atualidade, em seu livro Mal-estar na Atualidade, e vale expor, inspirado na obra de Freud “Mal-Estar na Cultura” nos idos de 1920, ele o responsável contemporâneo, nos convida a refletir que não possamos pensar mal-estar sem ressaltar o veste de que o que se inscreve cá é da ordem da subjetividade, que o mal-estar é material prima sempre recorrente para a produção de sofrimento nas individualidades. 

Devemos pensar com urgência nos novos desafios que surgem e que se impõem ao sujeito dentro dessa novidade cartografia, a perda do timing, o oração do autogerenciamento trazido por Byung-chul Han em Sociedade do Cansaço ao nos colocar frente a perda do pai, do Estado, e sem um sustento que antecede, que nos aponte um caminho, as pessoas se cobram cada vez mais para apresentar resultados – tornando-as vigilantes e carrascas de suas ações. Em uma era em que poderíamos trabalhar menos e lucrar mais, a ideologia da positividade opera uma inversão perversa: nos submetemos a trabalhar mais e a receber menos. Essa vaga do “eu consigo” e do “yes, we can” tem gerado um aumento significativo de doenças porquê depressão, transtornos de personalidade, síndromes porquê hiperatividade e “burnout”.

A proposta da Psicanálise não chega porquê um oração que antecede, um tanto cristalizado ou alienante, uma receita de bolo, muito pelo contrário, convida a pensar, se implicar na cena, se fazer ator principal  do espetáculo da vida e não um mero coadjuvante ou um jogador no banco de reservas ou um investidor medíocre de seus desejos. É sobre se a ver com a castração, mourejar com frustrações, fazer escolhas e deliberar qual fatura você vai remunerar porque ela SEMPRE chega.

FÁCIL? Não me atreveria a fazer tal afirmativa, mas digamos que aquilo que Freud levou para uma de suas pacientes no início do século XX – O caso Dora- ao perguntar “Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?” seja o motor, o incômodo, o tropicar que machuca, mas que nos arremessa para frente, um despertar pra se movimentar. E trazendo a grande máxima de Freud: “Quando a dor de não estar vivendo for maior que o temor da mudança, a pessoa muda.”

Hospedar – Ouvir – Pontuar – Implicar – Incomodar – Instigar – Fazer pensar

Talvez colaborar no trabalho de revelar os negativos de fotos arquivadas no inconsciente, invitar o sujeito a penetrar sua caixinha de pandora, ou os segredos de polichinelo, ou seja, aquele que todo mundo sabe e pode enxergar, mas que é evitado, justamente por ser repugnante. Mais eis cá um dos infortúnios do psicanalista, menear toda essa situação, valendo-se do processo transferencial que o analisando estabelece com ele.

Referências:

*BESSA, Bráulio- Trova que transforma/ Bráulio Bessa; Rio de Janeiro; Sextante, 2018.

*BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Cultura Brasileira, 2016.

*CORTELLA, Mário Sérgio- Não nascemos prontos! Provocações filosóficas / Mário Sérgio Cortella. 19 ed. – Petrópolis, Rj: Vozes, 2015.

*FREUD, Sigmund. (1905[1901]). Migalho da estudo de um caso de histerismo. In: Obras Psicológicas de Sigmund FreudRio de Janeiro: Imago, 1996, vol. VII. 

*HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

*LACAN, Jacques. (1959-1960). O Seminário, livro 10: A angústia- Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 

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Leibe Felipe

Leibe Felipe

Leibe Felipe é um Jovem Cristão, Fundador da Escola Cristã Humaniza, Especialista em Estratégias Digitais e Marketing Politíco -> @felipeleibe

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